Surgia na noite de 18 de novembro de 1881 o que viria a ser considerado o mais importante de todos os cabarés da história: Le Chat Noir (O Gato Preto). Fundado no bairro boêmio de Montmartre (Paris), era um estabelecimento totalmente intimista e informal, ocupando pouco mais de 3,5 x 4 metros quadrados. Comportando aproximadamente cinqüenta pessoas, os frequentadores desse pequeno estabelecimento bebiam, fumavam e conversavam, enquanto assistiam a uma série de apresentações artísticas, apresentadas pelos próprios artistas do local, frequentemente acompanhadas do piano. Todas as atrações eram apresentadas e conduzidas por um mestre de cerimônias, o excêntrico e sagaz artista e empresário Rodolphe Salis, fundador e dono do Gato Preto. Mas como, num bairro afastado e perigoso de Paris, num estabelecimento apertado, este Cabaré pôde transformar-se num fenômeno popular capaz de atrair personalidades de todos os tipos e lugares, fazendo de Montmartre um símbolo da vanguarda e de liberdade artística que viria a ser adorado e copiado por toda a Europa?
Principais Artistas: Rodolphe Salis, Émile Goudeau e Henri Rivière.
Galeria de Fotos:
Links de vídeos:
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https://www.youtube.com/watch?time_continue=67&v=gTsjyk1WXFU
Mais sobre o Le Chat Noir:
No início dos anos de 1880, Montmartre era um bairro pobre e violento, essencialmente rural. Tratava-se de um local exótico que combinava operários, prostitutas e desempregados – seus tradicionais moradores aos novos boêmios que se reuniam nos cafés para conversar e beber nos finais de tarde. Ao passar do tempo essa localização mostrou-se ideal, já que era de fácil acesso para os frequentadores que vinham de outras regiões da capital. Rodolphe Salis escolheu o local com o dinheiro que ele tinha para pagar: uma pequena loja no número 84 do Boulevard Rochechouart, que havia funcionado como posto de correio. O aluguel foi negociado pelo valor de 1.400 francos mensais e, assim, o Le Chat Noir abriu suas portas. Inicialmente, o estabelecimento funcionava apenas às sextas feiras e servia como ponto de encontro de artistas, principalmente dos próprios amigos de Salis, pois a maioria deles morava no bairro.
O espaço interior do Le Chat Noir era pequeno e dividido em dois salões, sendo o segundo menor e mais estreito, sem ventilação, apenas três degraus acima do nível do primeiro. Logo ficou evidente que os frequentadores evitavam o lugar. Salis, então, tratou de elaborar uma estratégia criativa para reverter a situação: colocou garçons vestidos em suntuosos trajes acadêmicos para servir no local e só permitia que clientes selecionados sentassem ali, apenas aqueles que “se sustentassem de seu intelecto”, batizando o local de L ́Institute (O Instituto). A estratégia deu certo e o Instituto tornou-se o espaço mais disputado do cabaré, tendo de ser expandido para o salão ao lado e tornando-se uma marca registrada da casa.
Outra inovação de Salis foi a de colocar na porta de entrada do Le Chat Noir um “guarda suíço”, vestido totalmente a caráter e adornado dos pés à cabeça de dourado, olhando diretamente nos olhos dos frequentadores, decidindo quem iria ou não ser admitido no cabaré. Aqueles que conseguiam entrar eram então acomodados em mesas e cadeiras desconfortáveis onde consumiam bebidas em abundância. Como não havia cozinha, os frequentadores bebiam vinho, cerveja, café ou chá, fumavam e conversavam muito, e assistiam às apresentações artísticas.
Na função de mestre de cerimônias, Salis convida os artistas-clientes a se apresentarem cantando suas músicas, recitando poemas, apresentando esquetes ou outro número de variedades em um palco aberto, eclético e diversificado. O fato do local ser pequeno e apertado, fazia com que o público e os performers se misturassem, criando uma atmosfera de proximidade e de intimidade. Divertido e espirituoso, Salis contribuiu muito para a popularidade do local com sua sagacidade e habilidade oratória e também com seu excelente domínio da utilização de um humor ácido e debochado, que agradava muito a plateia do local. Os encontros artísticos logo tornaram-se diários e foram potencializados pelo fato dos jovens artistas contarem agora com um lugar exclusivo para ensaios. Sabe-se que praticamente todas as noites, mesmo quando o cabaré já era muito famoso e vivia lotado, quando as portas se fechavam para o público Salis e seus colaboradores mais próximos continuavam no local para assistirem ao trabalho de novos artistas, criarem números, ou aperfeiçoarem os números antigos.
Mas nem tudo era maravilha nas noites do Le Chat Noir. Com a fama, o cabaré tornou-se alvo frequente de assaltos por parte da bandidagem de Montmartre. Com seu jeito espirituoso Salis tentava incorporar os incidentes à sequência de performances da noite, tentando fazer com que até os assaltos se tornassem parte da aventura de frequentar o cabaré. Mas a situação foi se agravando muito até que certa noite um dos garçons do Chat Noir foi esfaqueado e acabou morrendo ao tentar defender Salis de um grupo de marginais locais, com quem ele se havia indisposto. De todo jeito, as instalações do Le Chat Noir há tempo haviam ficado pequenas para a popularidade que o cabaré ganhou, e Salis decidiu então que havia chegado o momento de mudar de endereço. Na noite de dez de junho de 1885, o Chat Noir fechou as portas no Boulevard Rochechouart, mudando-se para um antigo e elegante hotel de três andares na rue Victor Masse 12, apenas dois quarteirões de distância do endereço original.
De casa nova, o cabaré deixou de ser um local intimista e informal e tornou-se um grande café, oferecendo também refeições e contando com uma sala que comportava mais de cento e cinquenta pessoas no seu último andar. A clientela também se tornou maior e mais diversificada, e passou a incluir grandes personalidades da época, como Maupasant, Huysman, Villier de l ́lsle Adam, Théodore de Banville, Général Boulanger, vários prefeitos de Paris, e, com alguma frequência, até mesmo Príncipe de Gales. Esse segundo local ficou conhecido entre os estudiosos como o “Segundo Chat Noir”, e lá as ambições de Salis ganharam nova dimensão. A quantidade de obras de arte, objetos, quadros e bugigangas que compunham a ambientação local era tão grande que o cabaré foi apelidado de “Louvre de Montmartre”. Um famoso painel amarelo e preto pendurado na porta de entrada recebia os frequentadores com os dizeres: “Aos que passam, sejam modernos!”. Émile Goudeau, escritor e artista criador do Les Hydropathes (Os Hidropatas), foi um grande amigo de Salis e colaborador do Gato Preto, o qual ele descrevia o ambiente da seguinte forma:
“O novo Chat Noir tem três andares; não é mais um cabaré, é um verdadeiro country inn. Na fachada, um gato gigantesco em um sol dourado se aquece entre duas colossais lanternas de ferro forjado, tudo concebido por Grasset, ao lado de uma inscrição indicando a data do estabelecimento seguida da advertência: Aos que passam, sejam modernos! Na sala de espera, um guarda alto está estacionado à frente da Diana de Houdon. A parede de vidro pintado foi desenhada por Willette, que também é responsável por vários painéis da primeira sala. Depois gatos, uma miríade de gatos de Steinlen: gatos de todo o tipo e de todo o tamanho, incluindo um gato de apenas três patas. Uma lareira e candelabros copiados de Grasset. Mais à frente, a Parce Domine de Willette, que já mencionei, e que provavelmente será mais bem entendida pelos antigos frequentadores do Chat Noir do que pelos recém- chegados.
O andar térreo pertence aos da moda; os poetas, músicos e pintores preferem o terceiro andar, onde o piano geme, os violinos cantam, sonetos explodem em fogos de artifício. Aqui eu preciso chamar atenção para a pintura de Rivière do Boulevard Rochechouart, agora parecendo menos macabra, estatuetas e bronzes, mas acima de tudo, suspenso no teto, um animal com aparência estranha que o guia chama nir didja, ou cavilha chinês. Buffon, me ajude! Em uma plataforma, a cabine do teatro de marionetes…….mas shhh! Sátira política, literária, social, artística! …excelente, pupazzi! Vou guardar seu segredo, O Caran D ́Ache!”.
Pode-se perceber que o relato de Goudeau deixa transparecer as concessões comerciais que foram feitas nesta segunda fase do Le Chat Noir. O primeiro andar se transformou em um elegante café, com a parede de vidro pintada por Willette e o serviço de cozinha completo para atender a nova clientela, endinheirada e curiosa, que se tornou frequentadora assídua do local. A essência artística e experimental do primeiro Le Chat Noir ficou resguardada no terceiro andar, onde os fundadores e os antigos habitués continuavam mantendo vivo o espírito irreverente e inovador do endereço original. Criou-se, assim, uma verdadeira divisão espacial entre um Chat Noir mais comercial e um Chat Noir ainda essencialmente artístico e experimental.
As apresentações artísticas também sofreram transformações no novo endereço, ganhando sofisticação. A maior novidade foi a construção, no outono de 1885, de um teatro de fantoches e de marionetes no salão do terceiro andar, que era conhecido como Salle des Fêtes. No ano seguinte, o teatro de fantoche foi substituído por uma nova atração, o Théâtre d ́Ombres, sob direção de Henri Rivière, que tornou-se polo de intensa experimentação da técnica, que foi sendo aperfeiçoada até tornar-se a principal atração do cabaré e uma referência em todo o continente.
Os números revelam a produção impressionante: durante os anos de 1887-1896, foram produzidas quarenta e três peças do Théâtre d ́Ombres, que chegavam a contar com até vinte pessoas para manipular os moldes de zinco e os painéis de vidro pintados por Rivière. Em 1891, para a produção de Ailleurs, um sofisticado sistema de iluminação, manipulado por arames, foi instalado possibilitando a criação de efeitos de luz de uma qualidade visual jamais vista antes. Enquanto as sombras eram utilizadas para narrar visualmente a história, Salis improvisava o texto ao vivo, acompanhado da música ao piano. O Théâtre d ́Ombres misturava, assim, performance, espetacularidade, som e movimento.
Em janeiro de 1897, a última peça do Théâtre d ́Ombres foi encenada. Os tempos haviam mudado. Nos seus dezesseis anos de sucesso, o Le Chat Noir abriu o caminho para que cabarés artísticos se espalhassem por toda Paris e também pela Europa. Peças de sombras eram apresentadas em vários locais e a competição selvagem fez surgir as mais variadas esquisitices. Na maioria das vezes, a motivação comercial tornou-se mais importante do que a qualidade das apresentações artísticas oferecida.
A mercantilização excessiva e a reprodução exagerada e muitas vezes estereotipada e vazia dos inúmeros cabarés que surgiram em Montmartre fez com que Salis se tornasse desesperançoso com o ambiente que, segundo ele, havia perdido o frescor e criatividade originais. Ele decidiu, então, que chegara a hora de partir, no que deveria ser uma longa turnê internacional do Théâtre d ́Ombres até São Petersburgo. Mas sua saúde deteriorou rapidamente e a turnê teve que ser abruptamente interrompida em 17 de março de 1897, na cidade de Chateaudun. Dois dias depois Salis morreu, e assim encerrou-se o reinado de sucesso do Le Chat Noir. O fechamento do mais famoso cabaré de Paris representava o fim de uma era, mas o espírito daqueles pioneiros ainda ecoaria por muito tempo, ressurgindo em vários outros cabarés europeus ao longo de todo o século XX.
Pesquisa realizada por: Antônio Valladares Díez (Discente de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO)
Referências Bibliográficas:
STREVA, Christina. Por um ator-provocador e um professor-criador: uma pesquisa-ação sobre a performance de cabaré. Tese de Doutorado publicada em 23 de junho de 2017. Disponível em:<https://drive.google.com/file/d/1VbblCRfyjOIAKKZPnRGOab9mEIKVmRIn/view>. Acesso em: 29 abr. 2019.
CERDÀ, Manuela. Le Chat Noir. Artigo de blog publicado em 5 de dezembro de 2014. Disponível em: <https://musicadecomedia.wordpress.com/2014/12/05/le-chat-noir-2/>. Acesso em: 29 abr. 2019.